Fechada a conta do Oscar 2023, ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ conseguiu incríveis 7 estatuetas, incluindo as mais importantes da premiação: Filme, Direção, Atriz, Roteiro Original. Um feito e tanto para um trabalho que não teve um orçamento de grande estúdio, mas que conseguiu grande alcance ao falar sobre problemas familiares com uma mistura frenética do conceito de multiverso e suas infinitas possibilidades. Sem dúvida, um dos filmes mais originais dos últimos anos.
É engraçado, contudo, como ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ sofreu uma transformação, de uns meses para cá, para uma pequena parte do público. Pequena, mas muito barulhenta: os ‘haters’ de rede social e os cinéfilos saudosistas. Esses dois grupos se uniram na tentativa de desqualificar as qualidades inegáveis do filme para apontá-lo como algo subestimado, que não mereceria tanta atenção do público. Afinal, “nem é tudo isso” — como dizem por lá.
Boa parte da crítica discorda: na semana passada, ‘Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo’ já havia garantido seu lugar na História do Cinema ao se tornar o filme mais premiado de todos os tempos, ultrapassando o clássico ‘O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei’. Alguns podem argumentar: “Ah, mas naquela época não havia tantos prêmios para entregar como agora, por isso que bateu esse recorde”. Sim, mas quando se analisa os dados na comparação em que os dois filmes foram indicados e disputaram os mesmos prêmios, o longa dos Daniels continua na frente. Mesmo assim, a grita continua com os argumentos de sempre: “não é tão bom”, “sentimental demais”, “feito sob medida para a geração TikTok”, e por aí vai.
O filme certo na hora certa
Não me considero da geração TikTok. Sequer tenho conta no aplicativo — tudo o que eu sei sobre ele é o Lucas Rodrigues que me conta. Não tenho grande afeição por obras audiovisuais que abusam da edição clipada, cheia de cortes (tanto é que eu tenho pavor de ‘Bohemian Rhapsody’, apesar de ser fã do Queen) que podem remeter justamente ao estilo celebrado na internet atualmente, em que a atenção é retida por muito menos tempo do que antes. Por outro lado, a última vez que senti satisfação real assistindo a um filme como senti em ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ foi vendo ‘Parasita’ em 2019. O que explica isso?
Simples: o filme estrelado por Michelle Yeoh (que, merecidamente, levou seu Oscar de Melhor Atriz pelo trabalho) não é só aparência, mas também substância. A linguagem empregada na direção dos Daniels e na edição (também premiada) de Paul Rogers servem para contar a história proposta da melhor forma possível e não o contrário, como dezenas de filmes, séries, videoclipes e vídeos para redes sociais fazem praticamente todo dia. É a forma servindo como uma luva ao conteúdo.
É aqui que as coisas começam a ficar mais nebulosas: quando ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ era só um filme indie, sem alcance no grande público (na época de seu lançamento nos Estados Unidos, no meio do ano passado), era considerado quase que de forma unânime uma obra-prima do Cinema. Assim que passou para o mainstream, todas as suas qualidades foram jogadas para debaixo do tapete para servir a um cenário, esse sim grotesco, das redes sociais: o ódio pelo ódio.
Em fóruns espalhados pela web e pelo Twitter de forma mais visível, existe essa cultura de odiar o que cai no gosto popular. Basta se tornar famoso e bem comentado, com ótimas avaliações, que perde o status e passa a ser rebaixado por quem antes era só elogios. Essa busca pelo like usando o choque e a discordância sem base é uma chatice, sendo bem sincero com você que me lê agora. A crítica construtiva, embasada e fundamentada é sempre bem-vinda e existem aos montes por aí, de jornalistas e críticos até usuários do Twitter com bom senso. No entanto, a gritaria sempre fala mais alto.
‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ não é ‘Green Book’
O problema fica mais fundo quando parte da crítica cinematográfica cai nesse mesmo papinho. Após a vitória de ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ no Oscar, alguns desses profissionais incorporaram seu lado mais tuiteiro e acharam de bom-tom espalhar hate no filme, apenas porque ele venceu os prêmios e foi reconhecido por grande parte do público. Muito disso se deu por conta de um dos queridinhos dos críticos mais antigos, ‘Tár’ (um filmaço de Todd Field estrelado por Cate Blanchett, mas acadêmico e frio demais para ser abraçado pelo grande público), saiu de mãos abanando do Oscar.
Acontece. Muitos grandes filmes não foram premiados. Cineastas como Sidney Lumet, Hitchcock, Godard, Kubrick, etc, não ganharam Oscar algum. ‘Tár’ é um grande trabalho, mas falou a ele o coração que o filme dos Daniels possui. Foi o filme certo na hora certa, que melhor capturou o zeitgeist de agora. Mas há essa parte amarga que considera o modo antigo de fazer Cinema (como se fazia na Nova Hollywood) é a única forma digna de ganhar prêmios e não é bem por aí. Muitos usam o mesmo expediente de um tuiteiro revoltado, como o caso daquela famosa crítica a ‘The Last of Us’ feita por um famoso portal geek brasileiro que foi amplamente criticada (com muita razão) por ser do contra apenas por ser. Sem embasamento, apenas por ressentimento e necessidade de catar cliques pelo choque em ser “do contra”.
Aí chegamos ao ponto principal: ‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ merece toda a atenção que vem recebendo de público e crítica? A resposta está no acolhimento que o trabalho recebeu da esmagadora maioria das pessoas que o assistiu e os recordes de prêmios que vem batendo dia após dia. O Oscar 2023, inclusive, foi uma das cerimônias mais acertadas dos últimos anos (assim como a que premiou ‘Parasita’), onde todos os prêmios foram exatamente para quem deveriam ir.
‘Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo’ não é ‘Green Book: O Guia’, que venceu em 2019 sem merecer em um ano com ‘Infiltrado na Klan’, de Spike Lee, além de ser um filme duvidoso em suas intenções. Se pesquisar, vai encontrar diversas pisadas de bola do Oscar em toda a sua história, mas neste ano não é o caso. Pelo contrário: parece uma virada de chave que começou lá em 2020, quando o filme do Bong Joon-Ho levou os quatro principais prêmios da noite, onde a forma antiga de fazer Cinema passou a dar lugar a outras visões, mais modernas, sobre como contar uma história que cative e entretenha o público, sem deixar de lado a diversidade e as questões sociais. Que bom.