A CD Projekt Red precisava de um milagre para conseguir ressuscitar Cyberpunk 2077 após o lançamento lamentável que marcou inúmeras pessoas e manchou a sua reputação em 2020.
Alavancando a sua parceria de sucesso com a Netflix por conta da bem recebida 1ª temporada de The Witcher, a produtora havia anunciado um anime – bem antes do lançamento do então aguardado game – situado no universo do jogo a ser realizado pelo estúdio Trigger, um dos mais conceituados do Japão. Assim nasceu o projeto de Cyberpunk: Edgerunners.
Com o lançamento desastroso e uma coleção de polêmicas, não restou muita opção para a CD Projekt além de trabalhar continuamente para conseguir deixar Cyberpunk 2077 o mais próximo do prometido e, de fato, jogável, sem ser vítima de diversos bugs e crashes que aterrorizavam os jogadores na época.
Bastou dois anos praticamente inteiros para Cyberpunk 2077 ter enfim seu desenvolvimento aprimorado como deveria ter sido entregue. Ao lado do lançamento de Edgerunnners, que quase ninguém mais lembrava que existia, o game recebeu seu update da versão 1.6. Entretanto, não fosse a chance que diversos curiosos deram ao anime, o jogo não teria ressuscitado e experimentado um status de “segundo lançamento” como ocorre agora.
O fato é que o anime feito pela Trigger é tão bom que conseguiu o impossível: fez jogadores antigos retornarem ao game aprimorado, alavancou as vendas com novos jogadores e, de quebra, ainda ajudou a restaurar a reputação da CD Projekt Red aos fãs. Mas o sucesso é merecido? A resposta é: sem dúvidas.
Night City, a cidade que cheira a sangue e violência
Cyberpunk: Edgerunners é uma série bastante acessível por ser bastante independente do game e do RPG de mesa original. A história é focada em um grupo de personagens inéditos e totalmente fechada em si mesma, situada apenas no universo cyberpunk futurista que é o tema dos jogos.
No caso, o espectador acompanha a jornada de David Martinez, um adolescente de classe baixa que frequenta a Academia da Arasaka, uma escola para privilegiados ricaços que devem sair da escola já para trabalhar diretamente na companhia de tecnologia bilionária. Como David é relativamente pobre, sua mãe, Gloria, trabalha por dois turnos seguidos como paramédica em uma cidade repleta de chamados de socorro já que a violência impera.
Sonhando que David consiga trabalhar no topo da torre Arasaka graças aos estudos, Gloria dá tudo de si, apesar do garoto rebelde ter outros planos para si mesmo, ainda que seja um menino prodígio dentro do cenário escolar. Após um problema acadêmico na escola, David acaba expulso da instituição. Mas esse evento não é o que define o fim da rotina normal do menino até então: quando retorna para a casa com sua mãe, os dois são pegos de surpresa em um tiroteio que mata Gloria.
Sem rumo, David vasculha as coisas da mãe e descobre um implante cibernético militar roubado escondido. Chamado de Sandevistan, o implante concede supervelocidade ao usuário, mas a um custo extremo na saúde mental. Não tendo mais nada a perder, David corre até um medicânico e manda implantar o aparelho em si mesmo. Após conseguir uma pequena vingança, David conhece a trilha-redes Lucy que serve de porta de entrada para realizar um antigo sonho: se tornar um edgerunner, um mercenário de Night City.
Ainda que Edgerunners seja uma história independente, imagino que seja um pouco mais difícil para espectadores que nunca tiveram qualquer contato em entender os termos originais do universo de Cyberpunk que são usados à rodo nos diálogos. Esse talvez seja o maior defeito do anime em não conseguir ser um pouco mais didático com termos importantes como cromo, ciberpsicose/ciberpsicopata, trilha-rede, mergulhão, medicânico, entre outros.
A maioria, creio, vai compreender o significado das palavras ao longo das aventuras de David e Lucy na cidade, mas é fácil ficar atordoado em um primeiro momento. Como o traço da Trigger também foge dos padrões mais convencionais da indústria de anime, ao ser muito estilizada – nada no nível de Devilman Crybaby, há a chance do espectador rejeitar o convite da série quase que imediatamente, mas negar dar uma chance a Edgerunners é um baita desperdício.
A começar, mesmo que seja situado na temática do cyberpunk que já rendeu diversos outros clássicos como o conceituado Akira de Katsuhiro Otomo – aliás, uma das inspirações mais claras para a escrita da série, Edgerunners é mais focado em fazer críticas sociais e econômicas pungentes que revelam o mais absurdo da crueldade do sistema de exploração em um capitalismo desenfreado comandado por oligopólios que travam guerras comerciais violentas entre si.
Nesse cenário, os personagens da série são jogados nesse tabuleiro como meros peões para realizar diferentes trabalhos para os chamados fixers que arranjam os serviços aos mercenários. A história, inteiramente conduzida por Bartosz Sztybor é digna do selo de qualidade que acompanha o estúdio polonês.
Não há a menor dificuldade em apresentar novos personagens, aliados e antagonistas, e delinear a motivação deles com uma facilidade invejável. O destaque, como não poderia ser diferente, fica para David e Lucy, que são os condutores da história em uma tragédia clássica quase obrigatória no subgênero. Outros personagens como Maine, Falco, Rebecca, Kiwi e Dorio também garantem momentos excelentes, conseguindo cativar com facilidade.
Infelizmente, como o ritmo da produção é bastante acelerado, a série inteira passa em um piscar de olhos. Assim, com mudanças ferrenhas acontecendo no sexto episódio, é uma pena que vejamos alguns personagens não atingirem desenvolvimento pleno, assim como não há tempo para mostrar mais interações entre eles – coisa de apenas três episódios até o desfecho da maioria.
A Vida de David
Logo, mesmo se encararmos a narrativa apenas com foco em David, a série possui essa triste falha em não criar laços muito significativos entre o protagonista e o restante da equipe, com exceção de Lucy. A interação entre ambos é excelente e diversos momentos do segundo episódio conseguem se tornar verdadeiramente icônicos reverberando intensamente até o desfecho da série.
David é um protagonista clássico de shounens que mostra o conhecimento de Sztybor com o material que propõe, afinal se trata de um ocidental escrevendo um formato 100% japonês. David é justamente o protagonista que vai até às últimas consequências para proteger aqueles que ama, sendo justo e acreditando ser especial – ou “escolhido” por aguentar o uso múltiplo do Sandevistan.
É justamente nesse jogo de pegar o clichê do formato e subvertê-lo que está a maior qualidade do roteiro da série. Aliás, é um tanto quanto irônico que David seja um protagonista muito mais interessante que V, o/a protagonista do jogo que inspira a série.
Edgerunners não é uma história feita para atender as expectativas dos fãs em relação ao futuro dos personagens. Ainda é uma história cyberpunk e todas são pessimistas por essência. Então ao trazer esse contraste meio mágico nos primeiros episódios, Sztybor consegue enganar os mais desatentos.
As mensagens sociais e a tragédia pessoal da ambição desmedida são contadas com muita qualidade, sempre elevando os níveis do jogo com riscos ferrenhos a cada nova missão – fora que a própria Night City se torna uma personagem por si só com seus habitantes tresloucados. Logo, os episódios sempre são carregados de ação desenfreada e violência extremada acompanhadas por uma trilha musical que não dá folga – esse detalhe é certamente um ponto negativo da obra.
Um acerto da Netflix
Por ser inspirada nas excelentes Cowboy Bebop na estética e muito em Akira para contar sua história, Cyberpunk Edgerunners é tão bom que nem parece ser da Netflix. A obra, ainda que curta, merece ser vista até mesmo por quem não é fã ávido de animes. Fazendo arte ao fundir públicos gamer e otaku em uma obra só, Edgerunners consegue ser bastante universal.
A série é bastante curta, contando com apenas dez episódios de menos de meia hora cada um e como a Trigger é muito conhecida por não trabalhar com a mesma marca mais de uma vez, é improvável que o estúdio retorne para continuar a narrativa em uma segunda temporada. Por mais triste que seja se despedir de uma obra excelente, é justamente pelo sentimento agridoce que sabemos estar diante de uma verdadeira pérola.
No fim, a série vai muito além de cumprir seus objetivos principais. Ela conseguiu até mesmo um dos mais improváveis comigo: voltar a visitar Cyberpunk 2077 mais uma vez desde 2020.