Artigo de Scorsese no New York Times põe um ponto final na novela com a Marvel – leia!

"A situação no momento é brutal e inóspita para a arte", escreveu o cineasta.

Martin Scorsese começou uma discussão enorme em Hollywood ao dizer, simplesmente, que os filmes da Marvel Studios não são cinema de verdade.

Como era de se esperar, o aclamado cineasta foi repudiado por várias celebridades – a maioria contratadas pela própria Marvel -, mas obteve apoio de figuras importantes do cinema mundial como Francis Ford Coppola, que chamou os filmes de super-herói de “desprezíveis e feitos apenas para lucrar”.

Agora, Scorsese publicou um artigo de sua autoria no jornal New York Times para acabar de vez com as especulações sobre o que ele quis dizer sobre o assunto.

Leia na íntegra:

“Quando estive na Inglaterra, em outubro, dei uma entrevista à Empire Magazine. Fui questionado sobre os filmes da Marvel. Respondi. Disse que tentei assistir a alguns deles e que não são para mim, falei que, para mim, eles estão mais próximos a parques temáticos do que aos filmes como conheci e amei durante toda minha vida — e, no fim, não acho que são cinema. Algumas pessoas parecem ter encarado a última parte da minha resposta como um insulto, ou como a evidência de ódio para com a Marvel de minha parte. Se alguém pretende caracterizar minhas palavras por esse caminho, não há nada que eu possa fazer.

Muitos filmes de franquia são feitos por pessoas de talento considerável e artístico. Você pode ver isso nas telonas. O fato de que os filmes em si não me interessem é questão de gosto pessoal e temperamento. Sei que, se eu fosse mais jovem, ficaria empolgado com essas imagens e talvez até quisesse fazer um. Mas eu cresci quando eu cresci e desenvolvi um senso de filmes — do que eles foram e do que eles podem ser — que é tão distante do universo da Marvel como nós, da Terra, estamos de Alpha Centauri.

Para mim, para os cineastas que passei a amar e respeitar, para os meus amigos que começaram a fazer filmes cerca da mesma época que eu, cinema era sobre revelação — revelação estética, emocional e espiritual. Tratava-se de personagens — a complexidade das pessoas e suas naturezas contraditórias, às vezes paradoxais; a maneira como elas podem se machucar e se amar e, de repente, ficar cara a cara. Era sobre confrontar o inesperado na tela e na vida que ele dramatizava e interpretava, ampliando o sentido do que era possível na forma de arte. E essa foi a chave para nós: era uma forma de arte.

Houve um debate sobre isso na época, então defendemos o cinema como algo igual a literatura, música e dança. E passamos a entender que a arte pode ser encontrada em muitos lugares diferentes, de formas diferentes — em ‘The Steel Helmet’, de Sam Fuller; em ‘Persona’, de Ingmar Bergman; em ‘It’s Always Fair Weather’, de Stanley Donen e Gene Kelly; em ‘Scorpio Rising’, de Kenneth Anger; em ‘Vivre Sa Vie’, de Jean-Luc Godard, e em ‘The Killers’, de Don Siegel.

Ou nos filmes de Alfred Hitchcock — suponho que você possa dizer que Hitchcock era sua própria franquia. Ou que ele era nossa franquia. Todo filme novo de Hitchcock era um evento. Estar em uma casa lotada em um dos antigos cinemas assistindo à Janela Indiscreta foi uma experiência extraordinária: um evento criado pela química entre o público e o filme em si, e era eletrizante. E, de certa forma, alguns filmes de Hitchcock também eram como parques de diversão.

Estou pensando em Pacto Sinistro, cujo clímax se passa em um carrossel de um parque de diversões real, e em Psicose, que vi em uma sessão à meia-noite na estreia, uma experiência que nunca esquecerei. As pessoas ficaram surpresas e emocionadas e não se desapontaram. Sessenta ou 70 anos depois, ainda estamos assistindo a esses filmes e nos maravilhando com eles. Mas são as mesmas emoções e surpresas às quais voltamos sempre? Acho que não. As peças do cenário de Intriga Internacional são de tirar o fôlego, mas elas não seriam nada mais do que uma sucessão de composições e cortes dinâmicos e elegantes, mas sem emoções dolorosas no centro da história ou na perda absoluta do personagem de Cary Grant.

As peças de cenário em ‘North by Northwest’ são impressionantes, mas não seriam nada mais do que uma sucessão de composições e cortes dinâmicos e elegantes, sem as emoções dolorosas no centro da história ou a perda absoluta do personagem de Cary Grant. O clímax de Pacto Sinistro é um feito, mas é a interpretação entre os dois principais personagens e a performance profundamente perturbadora de Robert Walker que ressoam agora.

Alguns dizem que os filmes de Hitchcock eram similares, e talvez seja verdade — o próprio Hitchcock se questionava sobre isso. Mas a mesmice dos filmes de franquia de hoje é outra coisa. Muitos dos elementos que definem o cinema como conheço estão nos filmes da Marvel. O que não existe nesses filmes é revelação, mistério ou perigo emocional genuíno. Nada está em risco.

Os filmes são feitos para satisfazer uma quantidade específica de demandas, e são projetadas como variações em um número finito de temas. São continuações no nome, mas são remakes em espírito, e tudo neles é oficialmente sancionado porque não pode realmente ser de outra maneira. Essa é a natureza das franquias modernas de cinema: pesquisadas no mercado, testadas pelo público, avaliadas, modificadas e remodeladas até estarem prontas para o consumo.

Outra maneira de esclarecer o ponto é que esses filmes são tudo o que os filmes de Paul Thomas Anderson, Claire Denis, Spike Lee, Ari Aster, Kathryn Bigelow ou Wes Anderson não são. Quando assisto a algum filme de qualquer um desses diretores, sei que vou ver algo absolutamente novo e ser levado a áreas de experiência inesperadas e, talvez, até inomináveis. Meu senso do que é possível em contar histórias com imagens em movimento e sons será expandido.

Então, você pode perguntar, qual é o meu problema? Por que apenas não deixar filmes de super-heróis e outras franquias? A razão é simples. Em muitos lugares ao redor deste país e do mundo, filmes de franquia são a escolha primária se você quer assistir a algo na tela grande. É um período arriscado na exibição de filmes e há menos cinemas independentes do que nunca. A equação mudou e o streaming se tornou o principal sistema de entrega. Ainda assim, não conheço um único cineasta que não queira projetar seus filmes nas telonas, projetando-os para o público nos cinemas. Isso me inclui e estou falando como alguém que acabou de fazer um filme para a Netflix.

A Netflix, e somente ela, nos permitiu fazer O Irlandês da maneira que precisávamos, e por isso serei eternamente grato. Teremos exibições nos cinemas, o que é ótimo. Gostaria que o filme fosse exibido em mais cinemas, por períodos de tempo maiores? Claro que sim. Mas não importa com quem você faça seu filme, o fato é que as salas de cinema, em grande parte dos complexos, estão tomadas por filmes de franquia. E se você me disser que isso é simplesmente uma questão de oferta e demanda e de dar às pessoas aquilo que elas querem, vou discordar.

É uma questão ‘quem veio primeiro: o ovo ou a galinha?’. Se as pessoas têm acesso a apenas um tipo de coisa e vendem incessantemente apenas um tipo de coisa, é claro que eles vão querer mais desse um tipo de coisa. Mas, você pode argumentar, é só eles irem para casa e assistirem a qualquer coisa que quiserem na Netflix, iTunes ou Hulu? Claro — mas em qualquer lugar menos na telona, onde os cineastas planejaram fazer seus filmes para serem vistos.

Nos últimos 20 anos, como todos sabemos, a indústria do cinema mudou em todas as frentes. Mas a mudança mais ameaçadora aconteceu furtivamente e oculta à noite: a gradual, mas constante, eliminação de risco. Hoje, muitos filmes são produtos perfeitos fabricados para consumo imediato. Muitos deles são bem feitos por equipes de indivíduos talentosos. Mesmo assim, eles carecem de algo essencial para o cinema: a visão unificadora de um artista individual.

Porque, é claro, o artista individual é o fator mais arriscado de todos. Certamente, não estou sugerindo que os filmes devam ser uma forma de arte subsidiada ou que alguma fez foram. Quando o sistema de estúdios de Hollywood ainda estava viva e passava bem, a tensão entre os artistas e as pessoas que dirigiam o negócio era constante e intensa, mas era uma tensão produtiva que nos deu alguns dos melhores filmes já feitos — nas palavras de Bob Dylan, os melhores deles eram ‘heróicos e visionários’.

Hoje, essa tensão se foi e há alguns no ramo com absoluta indiferença à própria questão da arte e a uma atitude em relação à história do cinema, que é desprezível e proprietária — uma combinação letal. Infelizmente, a situação é que agora temos dois campos separados: há entretenimento audiovisual mundial, e há o cinema. Eles ainda se sobrepõem de tempos em tempos, mas isso está se tornando cada vez mais raro. E temo que o domínio financeiro de um esteja sendo usado para marginalizar e até menosprezar a existência do outro. Para quem sonha em fazer filmes ou está apenas começando, a situação no momento é brutal e inóspita para a arte. E o simples ato de escrever essas palavras me enche de uma terrível tristeza.”

 

Paulo Cesar Góis, tradutor e redator. Foi introduzido por Harry Potter no mundo nerd. Desde então devorou de Duna a Sandman, e usa a fantasia e a ficção científica para tornar o universo um pouco mais mágico.